Deve ser interessante viver no universo
paralelo existente na mente de um desses privilegiados, responsáveis por pensar
as grandes questões e resolver os grandes problemas em nosso lugar, enquanto
nós seguimos tranquilos com a nossa vida medíocre. Soube há poucos dias que a
Secretaria de Educação da província de Buenos Aires, a mais populosa da
Argentina, vai acabar, já a partir do ano que vem, com as notas baixas das
escolas primárias públicas e privadas.
Se você
não é um desses luminares da humanidade, você pensou, assim como eu, que se
trata de uma medida enérgica para dar um salto absoluto de qualidade no ensino
básico. Ingênuo. Assim como eu. Do mesmo modo que por aqui, quando o governo
não consegue honrar os compromissos, ele muda a lei, por lá as notas baixas
serão eliminadas na base da canetada. Mas não a dos alunos; a da secretária. A
partir de 2015, as notas válidas serão de quatro a dez e a média para ser
aprovado será sete.
Mas alto
lá! Há uma justificativa. Segundo a secretária, Nora de Lucia, o objetivo da
medida é evitar “afetar a autoestima” do aluno. Em entrevista, ela disse ainda
que acha que “um aluno que muitas vezes é brilhante em uma matéria acaba
ficando desestimulado quando recebe um zero ou outra nota baixa em outra
matéria. Acho que devemos cuidar da autoestima da criança”. E você aí, achando
que o dever da escola era ensinar.
Chega a
ser constrangedor comentar a “boa intenção” da secretária. Ela não só deve
pertencer àquela autodeclarada elite intelectual que sabe sempre a melhor
alternativa para resolver os problemas dos outros (contando sempre, é claro,
com uma “excelente” justificativa), mas também, como György Lukács, citando o
filósofo alemão Johann Fichte, acha que, se os fatos não condizem com o que ela
pensa, “pior para os fatos”. Se alguns alunos, por vezes, tiram notas baixas,
pior para as notas.
O que
ela talvez não saiba, em sua generosa cruzada contra qualquer ameaça à
autoestima dos alunos, é que está contribuindo para criar uma leva de idiotas –
que no grego indicava aqueles voltados apenas para si mesmos – cheios de
autoconfiança, o que está certamente entre as coisas mais perigosas deste
mundo. É aquilo que se pode chamar de “geração curling”. Você deve se lembrar
daquele esporte de inverno no qual alguém faz deslizar uma pedra em uma pista,
enquanto outros dois atletas vão esfregando e alisando o gelo à frente, a fim
de facilitar o caminho. Essa legião de jovens – que, lembre-se, tornar-se-ão
adultos – irá formar sua personalidade sendo privada da mais mínima experiência
do fracasso, não importando qual seja o seu desempenho, e com a firme
expectativa de que o mundo tem o dever de aplainar a estrada à sua frente; que
os professores devem defendê-los de seus próprios erros, que os chefes devem
“motivá-los” a trabalhar bem e que, por fim, o Estado deve converter em
direitos pétreos todos os seus caprichos. Em suma, não formamos nem pessoas
intelectualmente capazes, nem tampouco seres humanos aptos a viver bem consigo
mesmos e em sociedade.
Há uma
história, talvez inverídica, de que o The Times perguntou certa vez ao escritor
e pensador inglês Gilbert Keith Chesterton o que estava errado no mundo. Ele,
então, teria respondido simplesmente: “Dear Sir, I am”. Se a pergunta fosse
feita a um desses iluminados que têm em suas cabeças a solução para o universo,
ele diria: “You fool, the world!”
Gabriel
Ferreira. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e doutorando em Filosofia pela
Unisinos.
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