Se da
perspectiva econômica todos são diferentes, da perspectiva da civilidade todos
são iguais: desrespeitam cotidianamente as mais básicas regras igualitárias do
viver comum.
Moro numa
pequena rua do Horto, que mais parece uma dessas ruas de subúrbio de novela da
Gloria Perez, ladeada do início ao fim de casinhas de fachada colorida,
senhoras idosas na calçada e crianças brincando do lado de fora (de fato,
confirmando o imaginário exótico-urbano, ela é frequentemente cenário para
comerciais que mobilizam noções de “povo” e “alegria”). O fato de o Horto ser
um bairro de origem operária, combinado com um imbróglio jurídico envolvendo
suas moradias, freou até agora a gentrificação habitual e fez da minha rua uma
espécie de microcosmo da sociedade brasileira: tem classe média baixa, classe
média média, classe média alta, famílias pobres onde casas pequenas são
divididas por mais de dez pessoas e até gente bem rica. Pois bem, se da
perspectiva econômica todos são diferentes, da perspectiva da civilidade todos
são iguais: desrespeitam cotidianamente as mais básicas regras igualitárias do
viver comum.
Num momento
em que a população vai às ruas e muito se fala de uma crise de representação, é
imprescindível lembrar que os representados costumam ser tão pouco republicanos
quanto aqueles que os representam. Volto ao meu microcosmo. Pouco antes de eu
me mudar, quando ainda não conhecia bem a rua e seus moradores, deixei meu
carro estacionado em frente a uma casa qualquer e, não me lembro por quê, não
voltei com ele. No dia seguinte minha filha nasceu, e o carro ficou lá por mais
um ou dois dias. Quando fui buscá-lo, dois dos pneus estavam arriados. Aquilo
me deixou encafifado, porque verifiquei no borracheiro que eles não estavam
furados (o que já seria improvável coincidência). Semanas depois, já morando
nessa rua, vim a saber que o morador da casa X não gostava que estacionassem o
carro na frente da casa dele e esvaziava os pneus de quem o fazia.
Carros não
são um problema apenas quando estão em movimento, mas, como se sabe, também
quando estão parados — ou quando se deseja pará-los. Há uma luta encarniçada
por vagas na minha rua e boa parte dos moradores coloca cones ou blocos de
cimento em frente às suas casas, para assegurar (ilegalmente, claro) suas
vagas. Eu sempre me recusei a fazer isso. Mas não posso posar aqui de cidadão
perfeito, porque já reclamei várias vezes que parem em frente à minha garagem,
mesmo não colocando o carro dentro dela. A partir de certo momento, preferi
deixar que colocassem carros na minha garagem. Preferi, por razões de
consciência moral, desempenhar o papel de otário ao de canalha.
Justamente,
no Brasil o cidadão que age de acordo com as regras elementares do viver junto
não se sente cotidianamente recompensado, mas sim passado para trás. Quando
ando de bicicleta na ciclovia da praia, procuro estar atento aos sinais para os
pedestres atravessarem da rua ao calçadão. Mas quase nenhum ciclista para, e
então eu mesmo me sinto impelido a não parar também, por falta de hábito
coletivo ou recusa à sensação permanente de ser um otário. Há uma espécie de
ciclo vicioso nessa conduta. Quanto menos os cidadãos obedecem às leis e regras
informalizadas de cordialidade, menos eles sentirão que devem obedecer a elas,
já que ninguém o faz. Essa falta de confiança no outro, no concidadão, vai
corroendo a vida social e deixando todos à beira de um ataque de nervos. Ou de
um ato de violência, como espancar alguém por conta de uma discussão de
trânsito. Meu amigo Pedro Duarte observou, a propósito, que as pessoas não se
dão conta da relação estreita entre incivilidade e violência nas nossas
cidades.
Outro dia
eu estava descendo a Pacheco Leão e vi dois ciclistas, desses de capacete,
uniforme e superbicicletas, passarem em alta velocidade, paralelos, no meio da
rua. Um deles tinha nas costas a inscrição “paz no trânsito”. Precisamente, no
Brasil a virtude é sempre responsabilidade do outro, e a culpa também é sempre
atribuída ao outro. Os ciclistas — independente de a sua causa ser a correta —
não são mais respeitosos às regras gerais do que os motoristas de automóvel. A
mesma pessoa carregando um cartaz contra a corrupção sonega impostos. Os
moralizadores de sempre não resistiriam a uma rápida investigada em suas
próprias condutas. Em suma, os representantes são em larga medida um espelho
dos seus representados.
Você que
sentiu uma pequena catarse com a transformação da corrupção em crime hediondo;
você que joga frescobol na beira do mar em praia lotada; você que reclama do
trânsito mas usa o carro para ir até a esquina; você que sente um gozo perverso
em humilhar empregados; você que fura filas; você que joga lixo na calçada: da
próxima vez que protestar contra “tudo que está aí” lembre-se de incluir as
suas próprias atitudes no protesto.
Texto: Francisco Bosco, no jornal O Globo.
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