quinta-feira, 3 de novembro de 2016

A indústria da multa


Grande parte das medidas tomadas por nossas lídimas autoridades tem como objetivo único, ainda que não declarado, engordar políticos. É este certamente o caso da maior parte das mudanças, sempre tão bruscas quanto inúteis, feitas à legislação de trânsito. Instalam-se radares por toda parte, e eis que vemos notícias de que nesta ou naquela cidadezinha de poucos milhares de habitantes foram aplicados (ou seria “arrecadados”?) tantos milhares de multas, por vezes mais multas que cidadãos habilitados. Inventam que precisamos de extintores assim ou assado, e logo depois eis que nenhum extintor é preciso, repetindo a palhaçada que alguns anos antes já fora feita com kits de primeiros socorros.

Mais recentemente, são os faróis que devem ficar acesos nas estradas, sob pena, claro, de multa. A multa, na verdade, não é a pena, mas o objetivo. Não se trata de um comportamento normal que se deseje garantir, punindo quem dele se desvie, e sim de uma fonte de renda para o Estado – para engordar políticos, como digo – que surge da criminalização de um comportamento perfeitamente normal e aceitável até a véspera. Seja ele andar de faróis apagados debaixo do farto brilho do sol em nosso país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza (mas que beleza), seja ele circular a 50 quilômetros por hora às duas da madrugada por uma rua onde em outros horários, radicalmente distintos, pode haver crianças indo para a escola.

O trânsito, por definição, só funciona se suas regras forem introjetadas
O que se faz é sempre o mesmo: proíbe-se o que é normal, o que todo mundo faz, de modo a forçar as vítimas – digo, os motoristas – a desembolsar vultosas quantias para melhorar a papinha dos políticos se, por um instante, se distraírem e se comportarem de maneira normal. Nem menciono os famigerados “pontos na carteira”.

O trânsito, por definição, só funciona se suas regras forem introjetadas, se a população inteira de motoristas tiver expectativas semelhantes, quaisquer que elas sejam, acerca dos próximos movimentos de seus pares. Na Inglaterra, dirige-se do lado esquerdo da pista, e aqui dirige-se do lado direito; o importante é que todos dirijam do mesmo lado. Trânsito é, ou deveria ser, o terreno da unanimidade.

As mudanças bruscas e a indústria de multas, por mais que se invente justificativas e se cozinhe estatísticas a posteriori, servem apenas para desfazer essa necessária unanimidade e tornar o nosso trânsito, que já não é para iniciantes, ainda mais perigoso. Em vez de dirigir como sempre e como todos, os motoristas se veem cuidando de agradar aos radares, aos guardinhas ou a sei lá que meio de impor-lhes conformidade a regras que mudaram e logo mudarão novamente. Ora, isso só faz criar confusão e perigo, além de, claro, como sempre, engordar os benditos políticos.

Carlos Ramalhete, Gazeta do Povo, Curitiba.

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