Nada é simples e direto neste país "criado por Deus e bonito por natureza".
Vejam este artigo:
"Já são
incontáveis as polêmicas geradas pela nova lei seca. Uma delas diz respeito ao
seguinte: caso o condutor do veículo se submeta ao exame pericial (exame de
sangue ou etilômetro) – cabe recordar que isso não é impositivo porque ninguém
é obrigado a fazer prova contra si mesmo – e se constate 6 decigramas (ou 0,6g)
de álcool por litro de sangue (ou 0,3 miligramas de álcool por litro de ar
alveolar), isso, por si só, já configura o crime do art. 306 do Código de
Trânsito? O que diz a lei?
“Art. 306.
Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da
influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine
dependência: Penas – detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e
suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir
veículo automotor.
§ 1. As
condutas previstas no caput serão constatadas por: I – concentração igual ou
superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a
0,3 miligramas de álcool por litro de ar alveolar; ou
II – sinais
que indiquem, na forma disciplinada pelo CONTRAN, alteração da capacidade
psicomotora.”
Cabe
remarcar o seguinte: ninguém é obrigado a fazer essa prova pericial, ou seja, o
condutor do veículo não é obrigado a ceder o seu corpo para fazer exame contra
si mesmo. Foi isso o que decidiu o STJ em março de 2012 (daí a nova reforma do
Código de Trânsito), observando a Constituição Federal, a Convenção Americana
de Direitos Humanos, a jurisprudência do STF assim como o princípio nemo tenetur se detegere.
Caso o
condutor queira se submeter ao exame de sangue ou ao etilômetro (bafômetro) e
fique constatada a taxa etílica estipulada na lei (acima referida), já estamos
(ou não) diante do crime do art. 306?
Os agentes
da repressão (policiais militares, policiais civis e Ministério Público),
tendencialmente, de um modo geral (há exceções, claro), afirmarão que a taxa
etílica referida é o suficiente para a configuração do crime, que seria de
perigo abstrato. Essa é a doutrina, por exemplo, de Francisco Sannini Neto e
Eduardo Luiz Santos Cabette, delegados de polícia, que no Portal
Atualidadesdodireito.com.br, afirmaram:
“Na
verdade, no inciso I, do §1°, do artigo 306, há uma presunção por parte do
legislador no sentido de que o motorista flagrado na condução de veículo
automotor com a concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por
litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligramas de álcool por litro de ar
alveolar, esteja com a sua capacidade psicomotora reduzida. Trata-se, nesse
caso, de uma regra clara.
Constatados os mencionados índices, há uma presunção
legal de embriaguez e o infrator poderá ser preso em flagrante. Neste aspecto
pode-se afirmar que se a ebriedade é constada por meio do exame de etilômetro
ou exame toxicológico de sangue nos patamares legalmente estabelecidos, se está
diante de um crime de perigo abstrato.”
Continuam
os renomados autores: “Sob o aspecto administrativo, se for constatada a
concentração de álcool em níveis inferiores ao mencionado no inciso I, não
haverá presunção de embriaguez geradora de punição na seara penal. Contudo, nos
termos do artigo 276 do CTB, com a redação disposta pela nova Lei, qualquer
concentração de álcool por litro de sangue ou por litro de ar alveolar sujeita
o motorista às penalidades previstas no artigo 165.”
O que acaba
de ser dito era o que vigorava antes da reforma trazida pela lei 12.760/12.
Antes era assim, por força do critério legal quantitativo. Havia mesmo uma
presunção legal de estar dirigindo sob a influência do álcool quando constatada
a taxa de 6 decigramas. A lei mudou, o critério agora é outro. Logo, o
entendimento que predominava antes não pode agora prosperar. Mudou a lei, outra
agora deve ser a interpretação.
A leitura
do novo art. 306 (“Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora
alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que
determine dependência”) nos leva, de plano, a inferir o seguinte: compete ao
órgão acusatório comprovar oito requisitos:
1º) que o
agente conduzia um veículo automotor (o ato de conduzir exige deslocamento do
veículo; não basta estar sentado no banco do motorista, com as mãos no
volante);
2º) que se
trata de um veículo automotor (o Código de Trânsito traz o conceito de veículo automotor,
que é o se locomove por si mesmo; bicicleta, por exemplo, não é veículo
automotor);
3º) local
da condução do veículo (via pública ou via privada: de se notar que a nova lei
já não especifica o local da condução, podendo ser qualquer um dos mencionados;
isso é muito relevante para a aferição da afetação ao bem jurídico protegido,
logo, para a existência ou não de crime);
4º) que
houve ingestão de álcool ou outra substância psicoativa que determine
dependência (drogas ilícitas, remédios etc.);
5º) sempre
que possível, o grau da intoxicação etílica ou decorrente de outra substância
(a quantificação da intoxicação, o tempo transcorrido desde a ingestão da
substância etc.);
6º) a forma
da condução do veículo automotor, visto que não basta a ingestão de uma
substância, sendo necessário, pela lei, que haja condução sob a influência de
álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:
7º) a
capacidade psicomotora do condutor (em razão da influência da substância
ingerida); em cada caso concreto impõe-se comprovar (não presumir), porque se
trata de requisito expresso da lei, a alteração dessa capacidade;
8º) que
algum bem jurídico (vida ou integridade física ou patrimônio) entrou no raio de
ação da real periculosidade da conduta (não é preciso haver vítima concreta,
sim, vítima indeterminada).
Os
requisitos 1, 2, 4, 6 e 7 estão contemplados expressamente na lei. Logo, devem
ser comprovados em juízo de forma indiscutível, valendo lembrar que a dúvida
favorece o réu (in dubio pro reo). A ausência de prova inequívoca sobre
qualquer um desses requisitos conduz à solução absolutória, no plano criminal,
podendo subsistir a infração administrativa do art. 165 do CTB.
Simples
leitura do tipo legal (do art. 306) já nos sinaliza que o grau da intoxicação
etílica ou por outra substância (6 decigramas ou 0,3 miligramas) constitui
apenas um dos fatores de verificação do crime do art. 306. Um, dentre oito (ou,
no mínimo, um além dos outros cinco requisitos expressos na lei 1, 2, 4, 6 e
7). Essa é a nova configuração do crime de embriaguez ao volante. Bastante
complexa. Tudo deve ser provado. Tudo que o legislador escreveu na lei deve ser
comprovado, porque se trata de requisito típico.
Pode ser
que aqui se repita a mesma discussão anterior se era ou não necessário
comprovar o requisito dos 6 decigramas de álcool por litro de sangue (assim
estava redigida a lei anterior). A polêmica durou uns 3 anos, até que o STJ
tomou posição no sentido de que obrigatoriamente cabia à acusação comprovar essa
exigência típica legal.
Vejamos: HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.
EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. AUSÊNCIA DE EXAME DE ALCOOLEMIA. AFERIÇÃO DA DOSAGEM QUE
DEVE SER SUPERIOR A 6 (SEIS) DECIGRAMAS. NECESSIDADE. ELEMENTAR DO TIPO.
1. Antes da
edição da Lei nº 11.705/08 bastava, para a configuração do delito de embriaguez
ao volante, que o agente, sob a influência de álcool, expusesse a dano
potencial a incolumidade de outrem.
2.
Entretanto, com o advento da referida Lei, inseriu-se a quantidade mínima exigível
e excluiu-se a necessidade de exposição de dano potencial, delimitando-se o
meio de prova admissível, ou seja, a figura típica só se perfaz com a
quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue o que não se pode
presumir. A dosagem etílica, portanto, passou a integrar o tipo penal que exige
seja comprovadamente superior a 6 (seis) decigramas.
3. Essa
comprovação, conforme o Decreto nº 6.488 de 19.6.08 pode ser feita por duas
maneiras: exame de sangue ou teste em aparelho de ar alveolar pulmonar
(etilômetro), este último também conhecido como bafômetro.
4.
Cometeu-se um equívoco na edição da Lei. Isso não pode, por certo, ensejar do
magistrado a correção das falhas estruturais com o objetivo de conferir-lhe
efetividade. O Direito Penal rege-se, antes de tudo, pela estrita legalidade e
tipicidade.
5. Assim,
para comprovar a embriaguez, objetivamente delimitada pelo art. 306 do Código
de Trânsito Brasileiro, é indispensável a prova técnica consubstanciada no
teste do bafômetro ou no exame de sangue.
6. Ordem
concedida (HC 166.377-SP, DJ 10/06/2010).
Com a nova
lei e atendendo a lógica do julgado acima compete à acusação provar, pelo
menos, cinco requisitos: 1, 2, 4, 6 e 7. O que está na lei tem que ser
devidamente evidenciado dentro do processo criminal. A infração penal nova se
tornou muito complexa. Não há margem nenhuma para presunções contra o réu. O
direito penal não admite presunções contra o réu. Não se trata de crime de
perigo abstrato, que se contenta com a mera constatação da taxa etílica no
sangue. Não é mais assim. A taxa etílica comprova o grau da intoxicação, mas
não revela, por si só, a forma da condução do veículo, nem a alteração na
capacidade psicomotora.
Além da
ingestão da substância, é preciso comprovar a forma de condução do veículo
(influência) bem como a capacidade psicomotora alterada do condutor. Um é
objetivo enquanto o outro é subjetivo. Os órgãos repressivos tendem a buscar
facilidades, por meio de presunções. Mas nada disso vale para o juiz. Dentro do
processo criminal, ou há provas de todos os requisitos legais, ou não há. E a
dúvida, como sabemos, favorece o réu. De modo algum nos parece correta a
interpretação de que estamos diante de um crime de perigo abstrato. No mínimo,
um perigo real, ou seja, uma conduta revestida de periculosidade concreta,
efetiva (tanto que a lei fala em influência e capacidade psicomotora alterada).
São essas exigências legais que revelam a periculosidade real da conduta. Não é
qualquer conduta que configura o crime do art. 306.
A tragédia
nacional das mortes no trânsito está retratada nos levantamentos do
institutoavantebrasil.com.br (mais de um milhão de mortos no trânsito de 1980
até hoje). O legislador prometeu que iria endurecer o Código de Trânsito. E
endureceu (aumentou a multa, por exemplo). Mas colocou na lei uma série de
exigências de difícil comprovação concreta. Flexibilizou nos meios probatórios
(isso é verdade), mas colocou na lei requisitos de relativa dificuldade de
evidenciação (dirigir sob a influência e capacidade psicomotora do agente).
Recordemos
o texto legal: “Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora
alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que
determine dependência”. O grau da taxa etílica é só um indício do crime do art.
306, que exige do juiz uma operação valorativa complexa, que vai passar pela
análise de um mundo de circunstâncias, destacando-se, dentre outras, as
seguintes:
Resolução
206/2006 do Contran-A Resolução 206/2006 do Contran determina que o agente
público, no momento em que se depara com um condutor suspeito, faça o seguinte:
Relato: a.
O condutor:
i.
Envolveu-se em acidente de trânsito;
ii. Declara
ter ingerido bebida alcoólica;
Em caso
positivo, quando:
iii.
Declara ter feito uso de substância tóxica, entorpecente ou de efeito análogo.
Em caso
positivo, quando:
iv. Nega
ter ingerido bebida alcoólica;
v. Nega ter
feito uso de substância tóxica, entorpecente ou de efeito análogo;
b. Quanto à
aparência, se o condutor apresenta:
i.
Sonolência;
ii. Olhos
vermelhos;
iii.
Vômito;
iv.
Soluços;
v. Desordem
nas vestes;
vi. Odor de
álcool no hálito.
c. Quanto à
atitude, se o condutor apresenta:
i.
Agressividade;
ii.
Arrogância;
iii.
Exaltação;
iv. Ironia;
v. Falante;
vi.
Dispersão.
d. Quanto à
orientação, se o condutor:
i. sabe
onde está;
ii. sabe a
data e a hora.
e. Quanto à
memória, se o condutor:
i. sabe seu
endereço;
ii. lembra
dos atos cometidos;
f. Quanto à
capacidade motora e verbal, se o condutor apresenta:
i.
Dificuldade no equilíbrio;
ii. Fala
alterada;
Afirmação
expressa (do agente público) de que:
De acordo
com as características acima descritas, constatei que o condutor [nome do
condutor] do veículo de placa [placa do veículo], [está/não está] sob a
influência de álcool, substância tóxica, entorpecente ou de efeitos análogos e
se recusou a submeterse aos testes, exames ou perícia que permitiriam certificar
o seu estado.
A lei nova,
como afirmamos, pode ser interpretada de duas maneiras: (a) basta a comprovação
dos incisos I ou II do § 1º e isso já presume a capacidade psicomotora alterada
(crime de perigo presumido) ou (b) a capacidade psicomotora alterada tem que
ser comprovada em cada caso concreto. Os órgãos repressivos, como afirmamos,
tendem a adotar a primeira interpretação (visto que facilita a comprovação do
crime). Mas ela não é correta (data vênia). Porque o tipo penal não é
constituído apenas do inc. I, do § 1º, do art. 306. E tudo que está na lei (no
caput) tem que ser comprovado (quando se trata de um tipo penal).
Independentemente
da opção dogmática (crime de perigo concreto ou abstrato), o que está na lei
tem que ficar devidamente evidenciado dentro do processo.
E porque
que a mera constatação dos 6 decigramas não é suficiente para a configuração do
crime? Porque o sujeito pode beber 2 copos de cerveja, por exemplo, e continuar
com sua capacidade psicomotora inalterada.
Antes a lei
se contentava com 6 decigramas de álcool por litro de sangue. Era só isso.
Agora é preciso que o condutor esteja com a capacidade psicomotora alterada, em
razão da influência gerada pela ingestão do álcool ou outra substância, ou
seja, é necessário que rebaixe o nível da segurança viária, por meio de uma
conduta realmente (efetivamente) perigosa. Nenhuma presunção preenche esse
requisito legal.
Ele deve
ficar devidamente comprovado no processo. Não é qualquer conduta que configura
o crime. A lei quer que o condutor conduza o veículo influenciado pelo álcool
ou outra substância (daí a necessidade de se verificar a forma de condução). E
mais: que o agente esteja com sua capacidade psicomotora alterada.
É preciso
uma forma de condução e um condutor que rebaixe concretamente (realmente) o
nível da segurança viária. Não é preciso ter vítima concreta. Não é preciso
matar ninguém nem gerar qualquer tipo de acidente. Estamos diante de uma
antecipação da tutela penal. Basta o perigo, mas ele deve ser real (por
exigência da lei). Basta a comprovação de que o agente não estava em condições
de dirigir com segurança (capacidade psicomotora alterada), o que se evidencia
por qualquer meio de prova.
Vamos
exemplificar: quem ingeriu álcool ou outra substância e dirige de forma anormal
(em zigue-zague, por exemplo) ou está visivelmente (ostensivamente,
notoriamente) embriagado (não conseguindo sequer caminhar sozinho, por exemplo)
ou tem 1,5g de álcool por litro de sangue ou mais (situação inequívoca de
embriaguez, com patente redução da capacidade de dirigir com segurança), está
praticando o crime do art. 306.
Nessas
situações não há nenhuma dúvida. O enquadramento desse condutor no art. 306 se
torna absolutamente impreterível.
De outro
lado, se o condutor tem de 6 decigramas a 1,5g de álcool por litro de sangue ou
se somente existem provas clínicas e testemunhais ou imagens sobre os sinais de
embriaguez, tudo depende do caso concreto, da pessoa concreta, das
circunstâncias do fato etc. Cada pessoa reage de uma forma frente ao álcool (ou
outra substância). Conforme sua quantidade, pode ou não ter sua capacidade
psicomotora alterada.
Na dúvida o
juiz deve absolver o réu, enviando cópia de tudo à autoridade de trânsito para
o enquadramento do agente no art. 165 do CTB.
Como se vê,
quem ingere álcool ou outra substância e dirige e for surpreendido, não vai
escapar: ou está praticando crime ou uma infração administrativa (com duras
sanções), salvo casos de tolerância, como a ingestão de um bombom com licor."
Luiz Flávio
Gomes, 55, doutor em direito penal, fundou a rede de ensino LFG. Foi promotor
de justiça (de 1980 a 1983), juiz (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001)
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