Há um século se regulamenta o transporte em São Paulo. Que
parte não entendemos?
Silvana Zioni e Nadia Somekh (*) - O Estado de S.Paulo
O fornecimento de combustível nas redes de postos foi
afetado por uma greve dos caminhoneiros que transportam e distribuem
combustível. Esse protesto, pela restrição aos caminhões na Marginal do Tietê e
outras vias que passou a valer no dia 5, caracterizou uma tática de guerra:
deixar o inimigo sem munição.
As filas de carros que se formaram nos postos à procura de
combustível (a preço inflacionado) demonstram quanto a circulação na cidade é
dependente do transporte rodoviário e questionam, mais uma vez, se medidas de
restrição à circulação de veículos ainda surtem efeito sobre o desafiante
problema dos congestionamentos em São Paulo.
Mas dessa vez o episódio serviu também para revelar o
estratégico papel do abastecimento e da movimentação de cargas na metrópole.
Percebemos novamente como na Região Metropolitana de São
Paulo a participação do transporte rodoviário é significativa: condicionantes
ambientais e aspectos da sua formação urbana o favoreceram. O maior polo
econômico do Brasil é o ponto de convergência dos principais eixos rodoviários
de integração do território nacional.
O sistema de transporte define o padrão de urbanização, a
forma da metrópole. Assim como o bonde e o metrô definem cidades densas, os
sistemas de transporte baseados no automóvel e no ônibus definem uma cidade
dispersa ou difusa, aumentando seus custos e reduzindo sua produtividade.
O crescimento do transporte de cargas nas cidades
brasileiras nas últimas décadas tem sido cada vez maior e contínuo. A ampliação
e dispersão das atividades econômicas pelo território nacional, a
intensificação do comércio internacional e as transformações tecnológicas e
organizacionais da produção estão se refletindo e impactando no tráfego urbano,
no meio ambiente urbano e na mobilidade da metrópole.
Novas formas de organização e movimentação de cargas estão
surgindo, ao mesmo tempo que, principalmente nas grandes cidades, vêm sendo
impostas restrições à circulação de veículos de carga.
A expansão e a dispersão das áreas urbanas e da metrópole
numa cidade-região metrópole cada vez mais ampliada parece dificultar essa
lógica: quão próximo os depósitos e centros de distribuição de carga podem
estar de atividades tão mais dispersas?
Como compensar maiores distâncias ou mais intensas
frequências dos deslocamentos que essas cargas demandam numa região
metropolitana cuja infraestrutura apresenta déficits estruturais?
A diluição das fronteiras das cidades hoje exige também um
planejamento metropolitano, na escala do desenvolvimento das grandes
cidades-regiões metropolitanas, que supere a escala e abrangência dos planos
diretores e dos regulamentos municipais.
Grandes metrópoles no mundo são tratadas como questão
nacional. É o caso, por exemplo, da Grand Paris, na França e do Ranstad
holandês.
As soluções propostas devem ser integradas e abrangentes.
Não adianta implementar o famigerado pedágio urbano sem investir maciçamente em
transporte coletivo de massa.
O balanço do dia seguinte à restrição foi revelador. O
alívio percebido durante o primeiro período em que vigorou a restrição (5 às 9
horas) foi substituído por marcas recordes de congestionamento.
A imagem das 11 faixas de tráfego em um dos sentidos da via
Marginal do Tietê inteiramente ocupadas por carros, ônibus e caminhões
divulgada pela mídia atestavam o fôlego curto das medidas adotadas.
Já vimos esse filme...
A política de restrição ao transporte de carga, ou melhor, a
primeira regulamentação do transporte de carga na cidade de São Paulo, tem mais
de cem anos. Ela acompanha a orientação das políticas de gestão do sistema
viário de São Paulo, voltadas a minimizar os efeitos do congestionamento que as
frotas crescentes provocam na aglomeração metropolitana.
O rodízio municipal, por exemplo, restringe a circulação nos
principais eixos viários, que permitem a articulação entre zonas e setores da
metrópole e são estratégicos para a interligação das rodovias que acessam a
região.
Com o rodízio vigorando há mais de dez anos, seus efeitos
têm perdido força, principalmente pelo constante e intenso crescimento da frota
de veículos que circulam no centro da metrópole.
As restrições à circulação de caminhões têm sido muito mais
severas do que as demais modalidades, com efeitos sobre a movimentação de
cargas e atividades de abastecimento e distribuição de mercadorias.
Tais restrições vêm sendo implementadas sempre com o intuito
de preservar as condições da circulação geral, mesmo que as viagens feitas por
caminhões representem menos de 25% do total de viagens realizadas no município
de São Paulo.
A crise da semana passada acrescenta mais um episódio à
série que há tempos vem se repetindo. O caráter das medidas anunciadas parece
experimental, paliativo, com alguns procedimentos vacilantes, e indica a
fragilidade dos regulamentos. O transporte rodoviário de carga foi protagonista
importante nos processos de ampliação do espaço econômico e social brasileiro.
Nas últimas décadas, as transformações na organização
produtiva da metrópole implicaram o crescimento dos fluxos de bens e
mercadorias que, ao afetar a organização da circulação geral e dos serviços de
transporte de carga, podem ter repercutido mais intensamente na organização
espacial urbana e na mobilidade da metrópole.
Com essas transformações surgiram novas atividades e atores:
a atividade logística, que busca potencializar recursos no deslocamento de bens
e mercadorias, visando a ganhos globais no processo de produção; e o motoboy,
que busca reduzir custos, tempo especialmente, no deslocamento de bens e
mercadorias.
Ambos integram processos socioespaciais característicos da
metrópole e são uma nítida expressão da sua precariedade, pois refletem as
deseconomias dos seus sistemas de mobilidade e suas desvantagens funcionais,
sociais e ambientais.
Até quando vamos repetir soluções ineficazes e prejudiciais
à produção de riquezas e ao cidadão?
(*) Silvana Zioni é professora da Universidade Federal do ABC. Nadia Somekh é professora da Faculdade de Arquitetura da Univ. Presbiteriana Mackenzie.
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