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segunda-feira, 2 de março de 2020

O Vulcan da RAF que pousou no Galeão durante a Guerra das Malvinas

XM597 do 50 Squadron, RAF Waddington. Estava no 101 Squadron durante
a Guerra das Malvinas.
No dia 3 de junho de 1982, o Squadron Leader  (Major) Neil McDougall comandava o Avro Vulcan XM597 da Royal Air Force na missão Black Buck 6, uma das operações de bombardeio britânicas que visavam atacar o aeroporto de Stanley, nas Malvinas, a partir da Ilha Ascenção, no meio do Atlântico, num percurso de mais de doze mil quilômetros ida e volta. 

Essas missões exigiam um plano de reabastecimento em voo bastante complexo, que totalizava onze operações de REVO. Armado com quatro mísseis antirradar Westinghouse AGM-45 Shrike, o principal objetivo do Vulcan XM597 era destruir o radar AN/TPS-43, instalado pelos argentinos, seu principal sensor nas ilhas.

Nesse dia, como passaram a fazer, os argentinos propositalmente mantiveram o radar desligado justamente para evitar esses ataques; assim, McDougall e sua tripulação sobrevoaram a área por cerca de quarenta minutos sem conseguir detectar e atacar o AN/TPS-43. No entanto, o Batalhão Antiaéreo 601 do Exército Argentino, procurando abater o Vulcan, ligou um radar Skyguard de controle de tiro; os sensores do Vulcan detectaram suas emissões e lançaram dois Shrike, destruindo-o e matando três operadores de radar do 601.

No retorno da missão, surgiu o primeiro problema do XM597: a sonda REVO quebrou e ele não pôde ser reabastecido. A mais de 600 milhas a leste da costa do Brasil, sua única possibilidade seria rumar para o Rio de Janeiro e tentar um pouso no Aeroporto Internacional do Galeão. O Flying Officer (1º Ten)  Chris Lackman, copiloto e responsável por monitorar o consumo de combustível, fez os cálculos e informou, solenemente, que não apenas Ascensão estava fora do alcance, mas, se continuassem voando a 20.000 pés, o combustível não seria suficiente nem mesmo para chegar ao Brasil.


McDougall subiu a 40.000 pés, onde a atmosfera mais rarefeita ajudaria o Vulcan a economizar combustível e pediu ao Flight Lieutenant (Capitão)  Brian Gardner, piloto reserva, para livrar-se dos documentos classificados: códigos, informações sobre alvos, frequências VHF, UHF e TACAN, call signs, mapas, planos, etc. Gardner pegou uma lata de ração, esvaziou-a e colocou nela os documentos junto com alguns objetos pesados para garantir que afundaria. A parte complicada seria descarta-la. E disso advinha o segundo problema do XM597. Só há uma forma de entrar e sair de um Vulcan: pela escotilha sob o nariz, no piso da cabine. Mas a 40.000 pés, devido à pressão, abri-la sem despressurizar seria mais ou menos como estourar uma garrafa de champanhe – com a tripulação fazendo o papel de rolha. McDougall não podia descer pois isso aumentaria o consumo de combustível. E, à essa altitude, a temperatura girava em torno de quarenta graus Celsius negativos.

Considerando isto tudo, abrir a escotilha a 40.000 pés não era muito recomendável. Ainda assim, ele deu ordens para a tripulação vestir as máscaras de oxigênio e despressurizou a cabine. 

Cuidadosamente, McDougall desacelerou o máximo que ousava – à grande altitude, a velocidade de estol do bombardeiro era maior do que em baixa, e foi necessária muita perícia com os manetes na desaceleração. Gardner posicionou a lata de ração na escotilha, vestiu o cinto e operou o mecanismo hidráulico de abertura. O ar frio rugiu para o interior da cabine do Vulcan. A doze quilômetros da superfície do Atlântico, Gardner soltou a lata e a viu cair e ser arrebatada pela corrente de ar. Puxou a alavanca para fechar a escotilha, mas, não tendo sido projetada para fechar em velocidade e grande altitude, ela se recusou a selar, impossibilitando a re-pressurização da cabine.


Dois mísseis Shrike – fornecidos pelos americanos – ainda estavam nas asas do bombardeiro. A perspectiva de aterrissar um avião de guerra britânico armado em um movimentado aeroporto civil no Rio de Janeiro não era lá muito animadora. Portanto, os mísseis tinham que ser descartados, e isso significava dispará-los. McDougall inclinou um pouco o nariz da aeronave e os mísseis foram lançados; um caiu no mar, mas outro falhou e não disparou, ficando literalmente “pendurado” no pilone. Então o terceiro problema assombrou McDougall e a tripulação: o míssil Shrike remanescente não funcionou possivelmente por um problema de ignição; assim, o bombardeiro aterrissaria num aeroporto civil com um míssil antirradar ativo pendurado na asa; um míssil que eles tinham tentado disparar, portanto não havia como saber o que aconteceria.


Cabe aqui uma breve observação sobre o funcionamento do AGM-45 Shrike. Após o operador ativa-lo, ele deve ser apontado em direção do radar-alvo para que o sensor do míssil capture o sinal e “trave” o alvo; neste momento o míssil emite um sinal de retorno informando o operador, que então efetivamente comanda o disparo. Isso significa que, mesmo que o míssil não tenha captado um sinal de radar e “travado” o alvo, ele pode ser disparado – e esse foi o procedimento adotado para “livrar-se” dos Shrike. No entanto, com a falha, não havia como saber qual seria o comportamento do míssil a partir de então. Seguiram rumo ao Rio de Janeiro. 

Míssil AGM-45 Shrike anti-radiação 
O AEO (Oficial Eletrônico de Voo) Rod Trevaskus mudou para a frequência internacional de socorro, contatou o controle de tráfego aéreo do Brasil e declarou a emergência de combustível. Através da máscara de oxigênio, sua voz parecia a do Pato Donald; some-se a isso o barulho forte do vento entrando na cabine pela escotilha aberta, e a comunicação se tornou bastante complicada. Tentando disfarçar sua identidade, Trevaskus descreveu a aeronave apenas como um “jato quadrimotor militar” e informou sua posição.

 MAYDAY, MAYDAY, MAYDAY. Este é um jato quadrimotor militar britânico a aproximadamente 500 milhas a leste do Rio de Janeiro no nível de voo 430, com uma emergência a bordo e muito pouco combustível. Solicitamos pouso imediato no aeroporto mais próximo”.

 Aqui é o controle do Brasil; informe seu indicativo, país de origem e destino”.

Este é o Ascot 597, um jato quadrimotor britânico com seis almas a bordo, com falta de combustível e sem pressão na cabine. Solicitamos assistência imediata e permissão para desviar para o aeródromo mais próximo”.

Ascot 597, NEGATIVO. Você não tem permissão para entrar no espaço aéreo do Brasil. Por favor, indique seu país de origem e destino final”.

Após alguns momentos, Trevaskus mudou de frequência e insistiu:

MAYDAY, MAYDAY, MAYDAY. Somos um jato quadrimotor britânico, a 480 milhas a leste do Rio no nível de voo 430, estamos criticamente sem combustível e precisamos de assistência imediata”.

NEGATIVO, NEGATIVO, você deve retornar. Você não tem permissão para entrar no espaço aéreo do Brasil. Você deve se identificar. Informe o seu aeródromo de partida e o seu destino”.

Nesse ponto, um segundo controlador brasileiro, este com sotaque americano, assumiu a comunicação, continuando com firmeza:

Quadrimotor britânico, identifique-se e indique sua origem e destino”.

Então o Flight Lieutenant David Castle, navegador, disse a Trevaskus:
Pelo amor de Deus, Rod, já que ele insiste, diga que somos de Huddersfield (cidade em West Yorkshire, Inglaterra, que conta com um pequeno aeródromo particular)! Eles não vão saber onde é!”.

Controle do Brasil, este é o Ascot 597, no nível de voo 430, de Huddersfield”, disse Trevaskus ao persistente controlador.

Ascot 597, Roger, aguarde...”.


Ao mesmo tempo, sem que eles soubessem, quando o Vulcan se aproximou da costa passou a ser monitorado pelo CINDACTA, que acionou dois caças Northrop F-5 Tiger do Esquadrão Pif-Paf sediado na BASC (Base Aérea de Santa Cruz), pilotados pelos capitães-aviadores Raul José Ferreira Dias e Marco Aurélio dos Santos Coelho; eles foram orientados com o código “Rojão de Fogo”, significando que se tratava de uma operação real.


Ao sobrevoarem a Baía de Guanabara, bem próximos do centro do Rio de Janeiro, os F-5 romperam a barreira do som e o estrondo foi ouvido a quilômetros de distância. Muita gente preocupada ligou para os bombeiros, para a defesa civil, para a Light (concessionária de energia elétrica na época), para a prefeitura… Dado o “susto” e os prejuízos com a quebra de vidraças, conta-se que houve quem exigisse providências da Aeronáutica quanto à indisciplina dos pilotos! Os caças encontraram o Vulcan e passaram a escolta-lo.

Inicialmente foi solicitado ao bombardeiro que desviasse para pousar na BASC, mas, com muito pouco combustível restante nos tanques, McDougall recusou. Quando cruzou a costa, o controlador de tráfego lhe deu autorização para a pista 10/28, mas isso significava que o Vulcan teria que fazer um circuito sobre a cidade e ele não tinha combustível para tanto. O controlador então o orientou para a pista 15/33 (na época 32/14), mais curta, mas bem à sua frente.


O Vulcan estava a quase seis quilômetros de altura e a pista a cerca de dez quilômetros à sua frente. McDougall desacelerou, abriu os freios aerodinâmicos e levou o bombardeiro a uma descida quase vertical. No final da manobra, o Vulcan estava a cerca de oitocentos pés acima do solo e a 2.400 metros do final da pista. A velocidade era de 300 mph, ainda muito alta para a aterrissagem, por isso McDougall levantou o nariz para que a enorme asa em delta do bombardeiro ajudasse a reduzi-la.

Quando voltou a nivelar, estava a 155 mph, 250 pés de altitude e a 1.200 metros do ponto de aterrissagem, parâmetros normais para o Vulcan. Após o pouso, restavam menos de 2.000 libras de combustível nos tanques; as manobras de aproximação foram uma soberba demonstração das habilidades de voo do Squadron Leader Neil McDougall.

Os F-5 mantiveram o Vulcan sob escolta até a sua aterrissagem, após o que fizeram duas passagens sobre a pista para se assegurar do pouso e rumaram de volta à BASC.

Enquanto diplomatas brasileiros, britânicos e americanos (preocupados com o Shrike) negociavam uma resolução para o incidente, McDougall e a tripulação permaneceram internados na Base Aérea do Galeão por quase uma semana. 

Segundo alguns relatos, os britânicos não tiravam seus uniformes – não podiam, já que não dispunham de outras roupas. Dizem que, após algum tempo, sua presença era notada à certa distância... 
Depois de alguns dias os brasileiros lhes compraram algumas roupas. Refletindo o animado espírito brasileiro, a tripulação britânica foi presenteada com roupas multicoloridas bem ao estilo do carnaval carioca. Conta-se que, quando surgiram no rancho da Base vestindo as novas roupas, foram aplaudidos!


Após a conclusão das negociações diplomáticas e o reparo da sonda do Vulcan, em 10 de junho, finalmente McDougall e sua tripulação partiram de volta a Ascenção, mas não sem antes fazer um tour num Super Puma da FAB sobre a cidade, o Pão de Açúcar e a costa carioca, além de uma noite na cidade com direito a cerveja, tudo patrocinado por seus colegas da Força Aérea Brasileira.

Quanto ao Shrike, os relatos dão conta de que teria ficado retido no Brasil. Há quem especule que ele acabaria servindo como base para o projeto do míssil brasileiro MAR-1, no entanto, nada disso foi oficialmente confirmado ou desmentido por ninguém, nem no Brasil, nem na Grã-Bretanha.

O Vulcan XM597 com as marcas das duas missões contra a Argentina
e o internamento na Base Aérea do Galeão
O Squadron Leader McDougall, foi merecidamente condecorado com a Distinguished Flying Cross pela liderança e habilidade demonstradas ao trazer o Vulcan XM597 com segurança para o Rio de Janeiro. E, finalmente, não restaram dúvidas quanto a um ponto muito importante: o Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, é muito longe de Huddersfield.

Fonte: Site O Velho General, artigo de Albert Caballé Marimón 

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