"Um inequívoco sinal da evolução do mercado de motos no
Brasil é a proliferação de diferentes grupos que elegeram a moto como hobby.
Apesar do mais visível motociclista entre nós ser o que rasga avenidas e ruas
das grandes cidades para atender à crescente demanda por entregas seja do que
for -- comida, documentos, remédios -- tal uso profissional da motocicleta não
contém paixão, ao contrário de quem elege a moto como passatempo.
Foto de Doni Castilho/Infomoto |
Trails, custom, enduros, grã-turismos, supersports,
adventurers, esportivas, choppers, cafe racers, bobbers, racing replicas,
cross... No Brasil há hoje motos para todos os gostos e bolsos, deixando na
poeira os automóveis e suas canônicas subdivisões (coupés, hatches, sedãs, SUVs
e outros), modestas diante da inventividade segmentadora do mundo da
motocicleta. Mesmo os especialistas no assunto se surpreendem com a velocidade
na qual a indústria e os seus clientes criam novas "famílias".
Porém, um dos grupos mais vistosos é o formado pelos
tradicionalistas fãs de motos estilo custom, cuja "mãe" de todas
elas, exemplo máximo do segmento, são as norte-americanas Harley-Davidson.
Decadente nos anos 1960, a Harley foi comprada por uma
fabricante de sistemas para pistas de boliche (!), a AMF, em 1969. Tal gestão
agravou a crise e, moribunda, a lendária marca nascida no meio-oeste
norte-americano, na cidade de Milwaukee, em 1903, só começou a renascer quando
comprada em 1981 por um grupo de investidores capitaneados por Willie G.
Davidson, neto de um dos fundadores. Desde então se iniciou uma dura caminhada
de reconquista de clientes e prestígio.
Se entre os norte-americanos as Harley-Davidson sempre
tiveram os status de mitos sobre rodas, foram mesmo os europeus a salvar a
empresa, já que as H-D viraram moda a partir de meados dos anos 1990 entre
italianos, alemães, franceses e espanhóis. Para conseguir virar o jogo, a
empresa inteligentemente abdicou de seu passado de diversificação -- em que
tentou, sem sucesso, enveredar por nichos diferentes, produzindo motos
fora-de-estrada, utilitárias de baixa cilindrada e até mesmo scooters.
Harley V-Rod Muscle: modelo que fugiu à tradição da marca e não chegou a emplacarFoto de Doni Castilho/Infomoto |
Focando sua produção em mastodônticos modelos, resolvendo
problemas crônicos de confiabilidade e desovando infindáveis variações sobre o
mesmo tema, sempre equipadas com o clássico motor em V a 45 graus, a
Harley-Davidson floresceu, vivendo um intenso ciclo virtuoso que só foi abalado
com a crise de final de 2008. No meio de seu auge, até mesmo para contrariar
seus detratores que a acusam de fabricar a mesmíssima moto há 50 ou 60 anos --
algo que, se não é 100% verdade, também não chega a ser mentira --, a empresa
lançou em 2002 uma moto com motor inédito, a V-Rod.
Em termos de arquitetura, o motor deste modelo não se
distancia dos clássicos motores H-D, pois é sempre um bicilindro em V a 45º,
mas a moto inovou no sistema de refrigeração, líquida, e numa interessante
tecnologia de construção do chassi que utiliza água sob altíssima pressão para
curvar os tubos de aço. Mesmo sendo um visível passo à frente em termos
tecnológicos, a V-Rod ensinou à Harley-Davidson que seu cliente é pouco
impressionável por tais esforços, e a V-Rod, sem poder ser chamada de fracasso,
tampouco é sucesso.
Hoje, apesar da crise mundial que redundou no declínio de
vendas e queda de seu valor de mercado, uma reengenharia teve início na
empresa: para começar, a H-D limou dispersões como o braço esportivo (a marca
Buell) e vendeu a italiana MV Agusta. Independentemente disso, as
Harley-Davidson continuam mais prestigiadas e cultuadas do que jamais foram no
passado -- mas a expansão em novos mercados é a chave para seu futuro.
PAÍS-CHAVE
O Brasil, onde a história da marca é longa e conturbada, é
um alvo declarado dessa reinvenção da empresa. Suas motos entre nós no passado
tiveram forte vínculo no uso militar, atendendo demandas dos batedores do
exército, polícias rodoviárias federal e estaduais. Com o fechamento das
importações em 1976, algumas unidades passaram a ser montadas em Manaus (AM),
com escancarado objetivo de abastecer os clientes de farda. Na sequência houve
um grande hiato para, com a abertura às importações dos anos 1990, voltarem ao
mercado pelas mãos de um importador brasileiro, o Grupo Izzo.
O apetente mercado nacional induziu a matriz a se instalar
em primeira pessoa também em Manaus em 1999, montando alguns modelos mas
mantendo a parceria com o representante, que detinha exclusividade na
comercialização. Anos de boas vendas não impediram que o diálogo entre a casa
mãe e o Grupo Izzo acabasse em duelo jurídico, com a Harley-Davidson
reivindicando para si o direito de retomar 100% da operação, coisa que
desembocou em um acordo cuja cifra recisória paga aos ex-representantes
estimula a imaginação de muitos.
Acordo firmado, a Harley-Davidson do Brasil estreou ao seu
próprio "guidão" em fevereiro de 2011, e agora, um ano depois,
inaugurou nova planta em Manaus, onde monta 18 modelos que vêm dos EUA em
regime CKD. A duras penas "arruma a casa", tentando recuperar os
arranhões à sua imagem causados pelas carências do passado recente e
estabelecendo uma nova rede de concessionários. Especial atenção deu ao
fornecimento de componentes e logística para evitar os fantasmas da assistência
técnica aproximativa, capaz de minar qualquer marca, por mais sólida que seja
sua imagem.
Em seu pioneiro ano operando em primeira pessoa, a
Harley-Davidson no Brasil comemorou 4.322 emplacamentos, segundo dados da
Fenabrave (associação das concessionárias), média mensal de 360 motos. Nos três
primeiros meses de 2012 a cifra de Harley-Davidson que chegaram às ruas foi de
quase 500 motos/mês, em um período onde o mercado como um todo decresceu, o que
comprova que mesmo oferecendo modelos clássicos a um custo elevado -- a mais
barata H-D sai por pouco menos de R$ 30 mil, e a mais cara, acima de R$ 70 mil
--, a lendária marca de Milwaukee é também uma das mais desejadas entre os
brasileiros."
Roberto Agresti é editor da Revista da Moto
Um comentário sobre a AMF (American Machine and Foundry), a companhia que controlou a Harley-Davidson entre 1969 e 1981: a empresa foi fundada em nos EUA em 1900 por Rufus L. Patterson, inventor da primeira máquina automática de produção de cigarros. Depois da Segunda Guerra Mundial, já sob a liderança de seu filho, Morehead Petterson, a AMF criou a primeira máquina automática de recolocação de pinos de boliche, fazendo o boliche crescer nos Estados Unidos como o maior esporte competitivo em equipe. A AMF começou a produzir bicicletas em 1950. Durante as décadas seguintes a empresa cresceu em vários segmentos, incluindo a produção de equipamentos de ginástica, esqui, cortadores de grama, fabricação de bolas esportivas, motos de neve, entre outros. Em meados dos anos 1980 a companhia enfrentou sérios problemas de gerência e teve que se desfazer de muitas subsidiárias, inclusive a HDMC, vendida a um grupo de executivos, liderados por Willie G.
Desde 1997, a empresa sómente fabrica e opera pistas de boliche, tendo 16.000 empregados.
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